Quinta-feira, 30 de Setembro de 2004
Passagem de testemunho
Folha caída,
mas decidida
a não morrer,
torna-se manto
da terra, enquanto
aguarda ser
o tecto, a casa,
o peito, a asa,
vital guarida
de uma semente
que já se sente
prenhe de vida.
Desfaz-se em húmus,
apoia rumos,
fixa raízes,
qual mãe extremosa,
que olha ansiosa
plos seus petizes.
E, finalmente,
sai da semente
um novo ser.
Passagem feita,
a folha aceita,
por fim, morrer.
(imagem: Autumn Leaves - Georgia O'Keeffe -
http://www.art.com/)
Quarta-feira, 29 de Setembro de 2004
Afinidade
É quando, sem haver prévias palavras,
se partilham as mesmas sensações,
se vivenciam semelhantes emoções,
mesmo que as vidas decorram separadas.</p>
Basta um sorriso, um gesto ou um olhar,
para que haja, entre afins, entendimento
e comunguem do mesmo pensamento,
sem precisarem, sequer, de o formular.
E a maior evidência ocorre quando
existe tanta e tal cumplicidade
que agem em total conformidade,
como quem vive dançando o mesmo tango.
(imagem: The Tango - Richard Zolan - http://www.art.com/)
Terça-feira, 28 de Setembro de 2004
Se ainda for tempo de regresso...
Quando os meus olhos te olharem e nem sequer
um frémito de luz ou sombra perpassar,
é porque a minha alma de mulher
ainda não distinguiu, mas já pressente,
que alcançámos o que havia a alcançar,
que algo morreu ou já é indiferente.
Que os teus olhos me devolvam o que vêem
e, se o sentires, então, que ainda me dêem
o brilho que nos meus sempre viveu.
Talvez, quem sabe?, apenas me afastei
do teu olhar, de nós e me ceguei
para não ver que o nosso amor morreu.
(imagem: Woman with green eyes - Tamara de Lempicka -
http://www.art.com/)
Domingo, 26 de Setembro de 2004
Taça da vida
Trago, gravada em mim a ferro e fogo
e confirmada no mergulho em água fria,
a marca de um enigma que, ao meu rogo,
mais se fecha, mais se nega, mais se esfingia.
Olho-me e não me sei. Cada dia é uma revelação
de mim, da vida
e da noção
até aí adquirida.
Vivo em constante ajustamento
de ideias
e de actos,
lendo nas reacções alheias
os factos,
os sinais,
que filtro, decanto
e, com afã,
inscrevo nos manuais
que releio, dia-a-dia,
para que, amanhã,
não se repita o erro ou o espanto,
perante o que ontem ou hoje eu não sabia.
(imagem: Contemplating an invisible mirror Dali - http://www.art.com/)
Sábado, 25 de Setembro de 2004
Feira de vaidades
Vejo-os impantes, como balões
soprados, ocos, sem peso algum.
Exibem brilhos, poderes, galões.
Valores humanos?... Nem um!... Nem um!...
Olham de cima o mundo em volta,
pisam, ignoram os que os rodeiam,
fracos, medrosos, andam com escolta
feita de iguais e que os galanteiam.
Falsos cenários que assim desfilam,
sem que vejamos os bastidores
de podres ripas, que se perfilam,
pra manter hirtos estes senhores.
Lançam migalhas aos pobrezinhos,
beijam crianças, consolam pais
- reses trazidas para os caminhos
por onde passam estes chacais.
Espero que, um dia, a Humanidade
acorde e saia da pasmaceira,
destrua a banca desta vaidade,
vaze os balões e desmonte a feira.
(imagem: The Presidential Family Botero - http://www.wmich.edu/)
Sexta-feira, 24 de Setembro de 2004
Teu chão
Como folha que cai valsando ao vento
e alongando a surpresa do chão que irá tocar,
é assim a tua mão, em qualquer tempo,
quando se faz extensão do teu olhar.
Suspendendo, em mim, qualquer certeza,
alonga, intensifica tanto a surpresa,
que não suporto a espera e quero voar,
ir ao encontro da mão e, assim, trocar
o sentido ao movimento,
e apressar o momento
em que serei o chão
da tua mão.
(imagem: Reclining Nude - Amedeo Modigliani -
http://www.art.com/)
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004
Efeito de amor-perfeito
Tocas-me a seda
abro-me em flor
num labirinto
de sensações
e antes que ceda
face ao pudor
solto o instinto
de hesitações
queda-se o tempo
em contemplação
do desafio
que me fizeste
e num momento
de inspiração
faço-me rio
do que me deste
deslizo corro
inundo beijo
os teus baixios
as tuas fragas
e subo ao morro
do teu desejo
com desafios
em que naufragas
volto ao início
e fecho-me em flor
no precipício
do teu langor.</p>
(imagem: White Pansy - Georgia O'Keeffe - http://www.art.com/)
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004
Provocações
Quando me olhas as mãos com ar expectante,
como quem lê direito em linhas tortas
o meu percurso, o meu futuro e fim,
não resisto a dizer-te, provocante:
- Não são indícios, nem limites. São rotas
seguras, que te conduzem a mim.
(imagem: Come Fly with Me - Alfred Gockel -
http://www.art.com/)
Terça-feira, 21 de Setembro de 2004
As mãos
Transmissores silenciosos
e que nos silenciam,
enquanto não encontramos a expressão
que sonorize cada nova sensação.
(imagem: Tenderness - Jaoni -
http://www.art.com/)
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004
Contradições
Não há sensação que mais me ocupe a mente do que a sensação de total vazio.</p>
É nestes dias que mais me questiono e analiso
e em que o pensamento, qual bisturi preciso,
mais me disseca e investiga. Tudo em vão!
Sendo uma busca cega, no meio do nada,
ocupa-me mais tempo e fico mais cansada
do que em dias da mais fértil produção.
(imagem: Enigma Without End - Salvador Dali - http://www.art.com/)