Domingo, 31 de Outubro de 2004
As idades da vontade
Criança, a vontade vem de todas as maneiras,
não há como contê-la, não há barreiras
que tapem os nossos olhos infantis.</p>
Crescemos e as barreiras já são visíveis.
Nada demais, pois não são invencíveis,
se a imaginação souber criar ardis.
Um pouco mais de vida, vem a consciência
e a perspicácia falar da conveniência
de termos umas vontades mais subtis.
Então, mudamos o querer, mesmo sem querer,
para sonhar, que é mais fácil de dizer,
sem chamar sobre nós poderes hostis.
Quando tudo se ganhou ou nada há a perder,
então, sim, vem o querer mais o poder
e o riso, por nos acharem senis.
A vontade é como um fruto extemporâneo,
tem um tempo de gestação não consentâneo
com a força das sementes nem com a raíz.
(imagem: Seeds Ricardo Monteiro - http://www.albumdanatureza.com.br/)
Sábado, 30 de Outubro de 2004
Luz e sombra (antagónicas e indissociáveis)
Quero ser dança, na tua alegria,
ser música, ser riso, ser fantasia,
ser espelho, ser eco, ser incentivo.
Mas, para ver a luz do teu sorriso,
sabe, Amigo, que também me é preciso
ver, na sombra da tristeza, o teu motivo.
(imagem: La joie de vivre - Pablo Picasso -
http://www.art.com/)
Sexta-feira, 29 de Outubro de 2004
A espera
Enleio e desenleio a ansiedade,
danço com as horas - tão lentas bailarinas -,
espreito às janelas, vigio as esquinas,
que se riem da minha insanidade.
Chego a notar-lhes resquícios de maldade,
quando se alongam em sombras pela rua,
quando se alçam em arestas contra a lua,
que é a única que entende esta saudade.
Cega pla arquitectura da cidade,
é o som dos teus passos que me alerta
e o teu vulto, em contra-luz na porta aberta,
que me diz ser tempo de tranquilidade.
(imagem: The waiting - Gustav Klimt -
http://www.art.com/)
Quinta-feira, 28 de Outubro de 2004
Homenagem aos ignorados
Iam os homens pra o mar,
sem se poderem negar
aos sonhos dos grãs senhores,
que cobiçavam esplendores
do outro lado do mundo,
para lá do mar sem fundo
e sem dó dos seus cativos,
nem das viúvas de vivos,
nem dos orfãos do destino,
a quem um mar assassino,
uma briga ou o escorbuto
vaticinavam o luto
como começo de vida,
por vezes tão mal parida,
tão carente, tão sem sorte,
que mais lhes valera a morte
que nascerem condenados
a filhos de degredados
sem pena, por sem delito,
além do que foi inscrito
por terem nascido pobres,
gado, pertença dos nobres,
muitos dos quais, em nobreza
perdiam para a riqueza
sacada aos que os enfrentavam,
mas que se autoproclamavam
de boa alma e linhagem,
mas se não fosse a coragem
dos pobres que, sem vintém,
sem conhecer pai ou mãe,
tinham que enfrentar a vida,
hoje a História era contida
em metade e, mesmo assim,
entre o princípio e o fim,
muitos nomes mudariam,
alguns nobres sumiriam,
alguns pobres, finalmente,
já com estatuto de gente,
subiriam à glória
de ter o nome na História.
(imagem: Frigate in a storm - Willem Van de Velde -
http://www.allposters.com/)
Quarta-feira, 27 de Outubro de 2004
Sensações
É fria a noite, é longa a madrugada,
denso o silêncio, pesada a solidão,
de ferro, a lua, de pedra, a escuridão...
Tu chegas e é de seda a alvorada!
(imagem: Allégorie de soie - Salvador Dali -
http://www.art.com/)
Terça-feira, 26 de Outubro de 2004
Dos pactos implícitos
Os teus lábios são loucos viajantes
que gostam de perder-se no caminho,
voltar atrás, recomeçar, devagarinho,
como se fossem dois principiantes...</p>
E eu, como viagem por fazer,
vou-me alongando nesse teu perder.
(imagem: Smooth operator - Talantbek Chekirov - http://www.allposters.com/)
Segunda-feira, 25 de Outubro de 2004
Porto de abrigo
Nos dias em que a minh alma, como nua,
te procura, pedindo afago e tecto,
és um imenso e calmo mar de afecto
que me envolve, me embala, me apazigua.
(imagem: Satin moments - Talantbek Chekirov -
http://www.allposters.com/)
Domingo, 24 de Outubro de 2004
Ver, ler e crer
Lançando o olhar na lonjura que convida
a deixarmos o espaço que nos enquadra
e a olharmo-nos de onde somos nada,
é que entendemos a dimensão da vida.</p>
Recuando aquém da cena reduzida,
há, porém, outra visão que nos aguarda
- o mar, o abismo, a cena rodeada
por um coração. Romântica guarida.
Há poetas cuja rima é a pintura
ou pintores cujos quadros são poesia,
para os sentidos de quem os vê e lê.
E é no mundo da arte, nesta urdidura
de fios suaves, tecidos dia a dia,
que a pobre alma desta escriba ainda crê.
(imagem: Chalk Cliffs of Rugen - Caspar Friedrich - http://www.art.com/)
Sábado, 23 de Outubro de 2004
Paisagem sem limites
És a paisagem em que gosto de perder-me,
sem marcas prévias, sem rasto posterior.
Gosto de pensar que não te descobri,
pelo prazer de encontrar-te e de rever-me
na busca do eco que devolves sem pudor,
no descanso do cansaço que não me cansa de ti.
(imagem: Human body - Masaaki Kazama -
http://www.art.com/)
Sexta-feira, 22 de Outubro de 2004
Recôndita nudez
Há no teu corpo,
num halo que me incendeia,
uma luz que se insinua
e vem ao meu encontro,
aqui, onde me sabes sempre nua.
(imagem: Sunburst - John Gavrilis
http://www.allposters.com/)