Domingo, 21 de Novembro de 2004
Quando acendemos as estrelas
Quando te afago nascem estrelas nos meus dedos
e ficam a brilhar num universo,
onde não existem peias, medos,
onde somos tudo pelo inverso,
onde, vencedores, nós nos rendemos
um ao outro, em cada beijo, em cada verso
que tocamos, que sentimos, que bebemos,
onde tu me pedes e eu te peço
que enfeitemos o céu que nos abriga,
que escrevamos, não um verso, uma cantiga
e que esse nosso canto dê início
a mais um belo fogo de artifício.
(imagem: Globular cluster HubbleSite - www.stsci.edu/resources)
Sábado, 20 de Novembro de 2004
Aos iluminados que me propõem a pergunta referendária
Vós, que vos achais tão tal-e-coisa,
mas em que qualquer mosca faz* e poisa
com o à-vontade de quem está entre iguais,
vindes, agora, com arrogância obesa,
deixar cair a migalha da mesa,
esperando que eu a apanhe e peça mais?!...</p>
Ficai com ela e molhai-a na baba
que da vossa boca sai e nunca acaba
- tanta é a produção da vossa mente.
Fazei com ela um banquete de tolos,
já que apreciais papas e bolos,
e deixai-me de fora, como sempre.
Para que quereis a minha opinião,
se mantendes a vossa posição
à conta de ignorá-la, impunemente?...
Pretendeis que me sinta orgulhosa
com a vossa auscultação falaciosa,
face à qual o basalto é transparente?!...
Usai, se vos agrada, uma coleira!
Vivei, se vos convém, na baboseira!
Curvai, se não vos custa, a cervical!
Mas não ouseis, sequer, a pretensão
de seriedade, pedindo a votação
com uma pergunta, no mínimo, anormal!!!
* eufemismo, para evitar o termo escatológico
(imagem: The scream - Edvard Munch - www.allposters.com)
Sexta-feira, 19 de Novembro de 2004
Subscrevo e passo a palavra...
</p>
Apelo à indignação cívica: a favor da Europa ou contra a Europa, mas jamais de cócoras...
Uma certa classe política em Portugal, talvez por se contemplar excessivamente ao espelho, continua a agir na aparente pressuposição de que os portugueses, rebanho fácil, aceitam tudo e são estruturalmente incapazes de um gesto colectivo de denúncia da estupidez e de revolta cívica.
Os deputados dos partidos da maioria conjuntural que nos vai desgovernando, aliados aos do principal partido da oposição, decidiram desafiar, com uma pergunta idiota para um referendo faz-de-conta, a inteligência dos portugueses.
Se, perante a ofensa, não nos indignarmos, a nossa cumplicidade pelo silêncio será seguramente interpretada como a definitiva confirmação de que, neste país, vale tudo e que os portugueses são, de facto, um povo que não merece mais do que um açaime e uma coleira.
Como me recuso a figurar na fotografia dos idiotas, apelo a todos os bloguistas e a todos os concidadãos que ainda não se deixaram sepultar em vida que, colectivamente, digam NÃO a quem persiste em querer tratar-nos, politicamente, abaixo de cão.
Apelo apenas, por isso, à indignação. Cada um saberá exprimi-la à sua maneira e da forma que entender mais adequada. Milhares de vozes a dizerem NÃO terão, seguramente, um impacto avassalador sobre a trafulhice referendária que nos espreita.
Esta não é uma causa de esquerda ou de direita. É uma causa da inteligência e do bom senso, os derradeiros atributos que nos restam.
A favor da Europa ou contra a Europa, mas jamais de cócoras.
Conto consigo para passar a palavra e o testemunho.
19 de Novembro de 2004
Ademar Santos, português por extenso
(http://abnoxio.blogs.sapo.pt/)
Simulações
Brincas ao toca-e-foge com o desejo,
no jardim do meu corpo, onde te escondes.
Finjo que não te apanho nem te vejo
e chamo-te, porque sei que não respondes.
E assim se alonga a vontade de nós,
que está em ti e em mim, vibrante e plena,
até que tu te cansas e eu perco a voz
e o cansaço ou o silêncio nos condena
a que toques-e-fiques e eu te veja,
sem tempo pra disfarces ou delongas.
Enquanto a tua boca a minha beija,
procuro-te, esperando que te escondas
e recomeces o jogo, novamente,
enquanto o tempo passa, lentamente...
(imagem: Birth of liquid desires - Salvador Dali - www.art.com)
Quinta-feira, 18 de Novembro de 2004
Que pobreza!...
Se um dia não souber quão pouco sei
ou pensar que já sei tudo e tudo fiz,
que se me alargue, à frente do nariz,
o palmo de visão que, então, terei...
Ou me cale, se ainda não me calei,
- pois mais se erra quanto mais se diz -,
mas se falar e me disser feliz,
isso só prova que me acomodei
ao recebido e em nada melhorei.
Dirá também que fui uma infeliz,
que nada de novo trouxe à matriz.
Vim ao mundo e nada lhe acrescentei!...</p>
Que pobreza!...
(imagem: Desert sunset - Mark Henderson - www.allposters.com)
Quarta-feira, 17 de Novembro de 2004
A romã
Numa romã aberta vejo um vitral,
com um ajuste de vidros tão perfeito,
que, certamente, obedece a um preceito
de um artífice exigente e magistral.
(imagem: Pomegranate - Louise D. Armistead - www.tulevision.com)
Terça-feira, 16 de Novembro de 2004
O vaivém das ideias
Tenho, por vezes, ideias
que mais me parecem teias,
entre um facto e outro facto.
Ficam balançando ao vento,
enquanto o meu pensamento
não encontra o plano exacto.</p>
Vem um sim, vem um talvez,
mais uns quês e uns porquês
que me fazem vacilar,
até que a ideia precária
se faz ponte imaginária
que decido atravessar.
Volto a sentir-me criança
que, pé-ante-pé, avança
e ora tropeça, ora cai.
- ora alcanço o fundamento
e firmo o meu pensamento,
ora a ideia se vai.
(imagem: The broken bridge - Salvador Dali - www.art.com)
Segunda-feira, 15 de Novembro de 2004
Ouve, meu mar...
Se, um dia, as tuas águas encontrar,
dá-me a tua mão, mas deixa-me ir
ao fundo de ti e se emergir
é porque és o meu meio, és o meu mar.</p>
Deixa, então, que aprenda a interpretar
a tua ondulação, o teu refluir,
sentir cada maré e concluir
se é em ti que quero naufragar.
Abre-me as tuas ondas, dá-me um leito
em que o meu corpo se acolha perfeito
no concâvo da tua aceitação.
E deixa que preencha o teu abismo,
com vagas de ternura e de lirismo,
e desvaneça a tua solidão.
(imagem: Mermaid - John William Waterhouse - www.art.com)
Domingo, 14 de Novembro de 2004
Antes do fim...
Que me importa
se o vento sopra lá fora,
se o sol já brilha ou demora
a beijar a nossa porta?...
Que me interessa?...
Pois se é aqui que nós estamos,
pois se é aqui que nos damos,
sem que nada nos impeça!...
Ou, agora,
nós já olhamos o tempo,
porque escurece, aqui dentro,
enquanto é dia, lá fora?...
Ou, será,
que prolongamos os dias,
com horas longas e frias
de um amor que já não há?...
Resta, então,
que nos olhemos de frente,
com a mágoa ainda ausente,
pra não toldar a razão,
e aceitemos
que nos amámos, enquanto
o amor foi um encanto
que (será?!...) não merecemos.
(imagem: Patient lovers - Salvador Dali - www.art.com)
Sábado, 13 de Novembro de 2004
Opção
Torceu a alma,
até extrair dela todo o desgosto.
Depois, mais calma,
traçou um ar de indiferença no rosto.
E vazou os olhos, que só lhe serviam para chorar.
Hoje, tacteia a vida, sem um lamento
e sem precisar,
em qualquer momento,
de se esconder,
porque o tacto não chora
e só se demora
no que dá prazer.
(imagem: Simple pleasures - Albert Fennell - www.art.com)